Herdeiros do Hip-Hop
Originários do mesmo berço musical, o rap e o funk brasileiros tem se destacado no mercado cultural brasileiro e passam a ser os dois gêneros nacionais mais exportados
texto de Mariana Bergel, com colaboração de Caco Cardoso
foto de Herwing Prammer/Reuters
Se para alguns soa natural afirmar que o funk brasileiro é irmão do rap e filho do hip-hop, para outros isso pode simbolizar quase uma blasfêmia. Considerando que ambos nasceram no mesmo berço musical e da capacidade de dar voz a uma parcela periférica e excluída da população - ainda que as temáticas, em geral, sejam diferentes –, fica difícil discordar das duas definições. Em um país de desigualdades e ausência de oportunidades como o Brasil, ambos os estilos são importantes por relatar problemas como pobreza, violência e racismo.
“O rap sempre buscou falar do social, da política, da educação e da autoestima. Algumas letras do funk eram totalmente ao contrário, mas, mesmo com essas distinções, ele pode ser visto sim como o hip-hop por ser uma arte que também vem da rua. Tanto o funk quanto o rap cantam, cada um à sua maneira, o que vivem e o que veem”, justifica DJ Cia, do RZO, um dos principais produtores de rap e hip-hop, mas que já trabalhou com ícones do funk, como MC Catra.
Mas, se o funk é considerado descomprometido com qualquer ideal, e o rap é essencialmente político, como explicar o fato dessas expressões culturais se originarem da mesma matriz?
Para responder a essa questão, é preciso voltar a James Brown. Transitando entre o gospel, o blues e o jazz, o showman reinou com sua soul music, criou o funk, inspirou a discotheque e estabeleceu a base do hip-hop, tornando-se um dos artistas mais sampleados na história.
Fora isso, tornou-se uma influência para a comunidade afro-americana, a exemplo de Martin Luther King e Malcolm X, entre as décadas de 1950 e 1960, quando grupos passaram a lutar pelos direitos civis e sociopolíticos para os negros nos Estados Unidos. Lançado em 1968, o funk revolucionário “Say It Loud, I’m Black and I’m Proud” (“diga alto: sou negro e tenho orgulho”), de Brown, que incendiava as plateias com sua dança frenética, roupas extravagantes e estilo inconfundível, tornou-se um hino inspirador dos movimentos civis norte-americanos.
Fruto da fusão do jazz com o soul e o rhythm and blues, o funk setentista deixou em segundo plano a ênfase na melodia e na harmonia para dar espaço a uma batida repetitiva, marcada pelo groove rítmico e sincopado do baixo elétrico e da bateria, com o acompanhamento, por vezes, de metais. Em tempo: acredita-se que a palavra “funk” vem de “lufuki”, que, na língua angolana quicongo, significa odor corporal. Essa expressão teria sido usada pejorativamente por racistas dos EUA, mas logo tornou-se uma gíria dos afro-americanos para se referirem ao cheiro do corpo com uma conotação sexual.
PRIMEIROS SONS EM NOVA YORK
Em meio à precariedade dos subúrbios de Nova York, na década de 1970, os negros, caribenhos e latinos, que viviam em situação de pobreza, próximo ao tráfico de drogas e à criminalidade, e vivenciavam uma rotina de racismo, viam as ruas como a única opção de lazer. Nesses locais, onde as gangues dominavam a cena, as comunidades começaram a organizar eventos de rua, como o que ocorreu em 11 de agosto de 1973. A festa organizada pelo jamaicano DJ Kool Herc, no salão de festas de um prédio no Bronx, é considerada o marco zero do hip-hop.
Ele teria se inspirado nos bailes das comunidades da periferia que aconteciam nos anos 1960 em Kingston, capital da Jamaica, quando o som dos vinis era usado como base para falas improvisadas, chamadas de “toast”, o que hoje conhecemos como rimas. Vem daí a origem do nome rap, sigla de “rhythm and poetry” (ritmo e poesia), com os primeiros MCs (Mestres de Cerimônia) abordando em suas letras temas ligados ao cotidiano.
Naquela mesma festa, Herc arriscou alternar os instrumentais de vinis de funk e soul, especialmente de James Brown, simultânea e repetidamente, em dois toca-discos. As batidas curtas, escolhidas a dedo pelo suingue e balanço e que tinham sua duração aumentada, levaram o público ao delírio, criando um terreno fértil também para os dançarinos de break, estilo de dança de rua. Garantindo o sucesso do experimento, ao seu lado, Coke La Rock, tido como o primeiro MC de rap, mandava improvisos ritmados e rimados para animar o baile. Daí por diante, o formato DJ + MC se espalhou pelos guetos de Nova York e, aos poucos, ganhou o mundo, dando voz às periferias. Ao mesmo tempo, o grafite, que também tomava as ruas como expressão artística contestadora da realidade periférica, adotou esse ritmo como inspiração.
Ainda em 1973, egresso de uma das gangues atuantes de Nova York, Afrika Bambaataa fundou a ONG Zulu Nation, que promovia valores como paz, união e diversão por meio dos quatro pilares escolhidos por ele para a cultura hip-hop: o MC, o DJ, os b-boys (dançarinos) e o grafite. A expressão “hip-hop”, vale dizer, tem origem na gíria afro-americana “hip”, que se refere a estar por dentro de algo atual, e “hop”, que significa dar pulos.
Em 1982, Grandmaster Flash, que criaria técnicas de mixagem como o backspin e popularizaria o scratch, e o grupo The Furious Five lançaram o clássico “The Message”, o primeiro rap que criaria técnicas de mixagem como o backspin e popularizaria o scratch, e o grupo The Furious Five lançaram o clássico “The Message”, o primeiro rap que se destaca como forma de expressão política. No mesmo ano, Bambaataa revo- lucionou o hip-hop com o single “Planet Rock” ao misturar a batida grave da bateria eletrônica TR-808 com o sample de “Trans-Europe Express”, da banda alemã de música eletrônica Kraftwerk, inventando o electro-funk e inspirando o miami bass e o funk carioca – este também seria influenciado pelo som produzido em Los Angeles, sendo a música “Volt Mix”, do DJ Battery Brain, a base mais utilizada pelo gênero nos anos 1990.
E NO BRASIL?
Voltando à década de 1970, no Brasil, a soul music norte-americana invadia os bailes do subúrbio do Rio de Janeiro e se nacionalizava graças a nomes como Tim Maia, Tony Tornado, Carlos Dafé, Banda Black Rio e Gerson King Combo. Este último, com o compacto “Melô do Mão Branca”, de 1982, é visto como um dos precursores do rap no país. “Fui batizado pelo próprio hip-hop como ícone do rap nacional sem nem saber que esse estilo existia”, lembra King Combo, apelidado de James Brown brasileiro.
Com a efervescência da disco funk, no final da década de 1970 e início da de 1980, os tradicionais bailes que separavam os brancos (de rock) dos negros (de soul) no Rio se uniram e aderiram ao estilo. Já em São Paulo, equipes como a Chic Show promoviam bailes de música black (funk e soul, especialmente) pela periferia.
Se essa onda black que vinha dos Estados Unidos, nos anos 1970, ganhou igualmente os bailes do Rio e de São Paulo, lá por 1985 começou a haver uma divisão entre os estilos de som ouvidos nas duas capitais. Esse momento foi de suma importância para definir o que seriam o rap paulista e o funk carioca, considerado uma música eletrônica genuinamente brasileira.
A maior velocidade das batidas do hip-hop em Miami e Los Angeles, quando comparadas com as do estilo de Nova York, somada ao conteúdo mais sexualmente explícito das letras resultaram em uma aceitação imediata no Rio de Janeiro, onde os bailes já eram chamados de funk. São Paulo, por sua vez, copiou Nova York, aderindo à batida mais lenta e cadenciada do rap: as letras eram mais contundentes, falando sobre o cotidiano e retratando a realidade dos excluídos em uma metrópole de concreto.
“Acredito que não reconhecer o funk que se faz aqui como hip-hop vem muito por conta do conteúdo e um pouco da batida, que é essa coisa abrasileirada que ficou. É quase como se tivesse perdido a identidade. Por outro lado, tanto o rap quanto o funk carioca, de certa forma, convergem e dialogam entre si porque são culturas de periferia e têm um perfil de consumo próximo, da classe C para baixo”, opina Sharylaine, pioneira no rap nacional.
DO BREAK AO RAP OSTENTAÇÃO
Com a popularização do break na primeira metade da década de 1980, surgiram os primeiros DJs, b-boys e MCs em São Paulo, como Nelson Triunfo, Nino Brown e MC Jack, entre outros, em encontros que ocorriam na Galeria 24 de Maio, na estação São Bento do Metrô, na Praça Roosevelt e em bailes de equipes como a Zimbabwe e Kaskatas.
Embora os MCs Pepeu & Mike tenham lançado o single “Melô do Bastião” em 1986, o ano considerado como marco dos primeiros registros fonográficos do rap por aqui é 1988. A coletânea “Hip-Hop Cultura de Rua” trouxe os hits de Thaíde & DJ Hum “Corpo Fechado” e “Homens da Lei”, produzidos por Nasi e André Jung, ambos do grupo de rock Ira!. Como bases instrumentais, foram usados funks setentistas americanos, incrementados com scratches. Na mesma época, foi lançado o primeiro disco de um grupo de rap nacional, o “Hip Rap Hop”, do Região Abissal.
“Com a febre do break dance, começamos a conhecer os nomes dos elementos. Mas, com o estouro do new wave, do rock nacional e dos Menudos, o break caiu, mas ficaram algumas células de discotecários – que não chamavam DJ na época – e alguns grupos de b-boys. Em reuniões com essas pessoas na São Bento, ficamos sabendo que o tipo de canto falado era o rap, que o jeito de fazer música dessa batida era o hip-hop, que esta cultura ainda englobava a dança como expressão corporal e o grafite como elemento visual”, conta DJ Hum.
Para Mano Brown, dos Racionais MC’s, a grande virada do rap no país ocorreu com a vinda do norte-americano Kool Moe Dee, responsável pelo primeiro show de rap internacional no Brasil. A apresentação reuniu, em janeiro de 1988, 15 mil pessoas no Ginásio do Palmeiras, em São Paulo.
“Lembro-me da entrada do show: o DJ dele, o Easy Lee, abriu com um som do Tim Maia chamado ‘Você Mentiu’, e a massa foi ao delírio. Até então, não havia um ícone, ninguém tinha visto uma performance de perto, nem na televisão. Todo o movimento estava lá nesse dia. Foi quando explodiu a coisa mesmo, e um monte de cara começou a cantar, entre eles eu, o Kleber (KL Jay), o Coquinho (Edi Rock). Foi um grande evento, a primeira vez que a gente viu um cara de verdade cantando em inglês, um cara pretão, com a roupa de couro muito louca, altão, forte, diferente da gente, que era tudo magro, raquítico, passador de fome. Queríamos ser aquilo ali, muita gente começou a querer ser aquilo a partir daquele dia. Fortaleceu a cultura”, diz o vocalista dos Racionais.
Entre 1988 e 1989, as coletâneas “O Som das Ruas” e “Consciência Black” trouxeram faixas dos pioneiros Sharylaine, Os Metralhas e Ndee Naldinho, além dos Racionais MC’s. Este último, por exemplo, denunciava a ação de grupos de extermínio da zona sul paulistana em “Pânico na Zona Sul”, dando um caráter mais sério e politizado ao movimento. Gradualmente, o rap nacional começou a escancarar as mazelas da população negra periférica, o racismo, a desigualdade social e a violência policial, revolucionando a cena.
Na década de 1990, despontaram nomes como Sabotage, RZO, Rappin’ Hood, SNJ, Detentos do Rap e Consciência Humana. No Rio de Janeiro, Gabriel, o Pensador, MV Bill e Planet Hemp (com BNegão, Marcelo D2 e Black Alien) eram os destaques. Nos anos 2000, caíram no gosto musical brasileiro artistas como Criolo, Djonga, Baco Exu do Blues, Emicida, Karol Conka, Rincon Sapiência, Flora Matos, Haikaiss, Hungria e tantos outros dos quatro cantos do Brasil, trazendo novas vertentes do rap, como o gospel, ostentação, sertanejo, acústico e romântico.
E O BATIDÃO DO FUNK?
Voltando ao Rio de Janeiro, em 1989, DJ Marlboro produziu o “Melô da Mulher Feia” na voz de MC Abdullah, usando como base “Do Wah Diddy”, da 2 Live Crew. Trata-se do primeiro single gravado para a coletânea “Funk Brasil”, marco do funk carioca. Vale lembrar que as melôs, versões de músicas americanas, principalmente do eletrofunk, funk melody e miami bass, popularizaram-se nas rádios e nos bailes do Rio ao longo de toda a década de 1980 e começo dos anos 1990. O gênero ainda contou com a colaboração de programas de TV, como “O Melhor da Furacão 2000”, da CNT, e “Xuxa Hits”, da Globo, determinantes para o seu estouro nacionalmente. Claudinho & Bochecha, Nego do Borel, MC Catra, Sany Pitbull, Valeska Popozuda e Tati Quebra Barraco são alguns dos artistas que fizeram e fazem o estilo popular.
No final dos anos 1990, DJ Luciano Oliveira, conhecido também como MC Sabãozinho, deu origem ao funk tamborzão, acrescentando ainda mais sensualidade ao estilo e um groove brasileiro que explora a sonoridade percussiva de atabaques e do samba gravados com baterias eletrônicas. A partir de então, o funk desponta como uma música ele- trônica genuinamente brasileira, criando uma identidade sonora local, passando, aos poucos, a ser exportado para outros países. Mais recentemente, uma geração de DJs como Rennan da Penha (preso desde abril de 2019 por associação ao tráfico, fruto de uma condenação considerada arbitrária pela defesa. Esclarecimento: após o fechamento desta edição, o artista foi solto) e Iasmin Turbininha têm botado fogo nos bailes nos subúrbios e periferias, disseminando ainda mais o estilo.
No final dos anos 2000, nasceu o funk ostentação na Baixada Santista, mais uma vez fazendo a correspondência do gênero com uma cidade litorânea. Os funkeiros paulistas MC Bin Laden, MC Guimê, Nego Blue e MC Tha são alguns de seus representantes. Na última década, o diretor de videoclipes KondZilla criou o que é hoje um dos maiores canais do YouTube do mundo, com mais de 52 milhões de inscritos, colaborando com a ascensão e consolidação do funk de São Paulo.
Vale ainda citar artistas como MC Pedrinho, Tati Zaqui, Pocah, Lexa e MC Hariel, entre outros, que têm alcançado sucesso estrondoso em todo o país.
O funk atualmente ganhou vários subgêneros: proibidão, brega, pop, 150 bpm... E, assim como o rap, outro desdobramento do hip-hop, começa a flertar com o trap, popularizado no trabalho dos norte-americanos Gucci Mane, Travis Scott e Cardi B. O estilo traz um conteúdo lírico agressivo e um som que incorpora batidas mais graves e lentas, com levadas mais cadenciadas e texturas mais eletrônicas, abusando das vozes modificadas com auto-tune.
Com Ludmilla e Anitta levando o funk carioca para além das fronteiras brasileiras, ele vem ganhando admiradores no mundo inteiro, influenciando produtores e artistas de outros países. É o caso do nova-iorquino Mahogany Beatz, vencedor de dois prêmios Grammy. “O funk brasileiro está na Austrália, no Reino Unido, na Repú- blica Dominicana, em todo lugar”, diz ele, que integra a produtora Roc Nation, do rapper Jay-Z.
Em parceria com o DJ Cia, Mahogany tem passado temporadas por aqui gravando faixas com participações das revelações Bivolt, Luccas Carlos e MC Kevin, entre outros. Ele foi apresentado ao DJ pelo empresário do entretenimento Kiko Latino, que vive em Nova York há 30 anos e viu no funk uma oportunidade de criar uma ponte entre artistas ameri- canos e brasileiros. “Eu vim do hip-hop, eu vim da rua, do break, eu fui b-boy. Conheci o funk por causa da rua e o que eu faço também é hip-hop. Os maloqueiros se entendem, a cultura da rua é isso, é a arte”, defende MC Kevin.
“O funk carioca foi influenciado pelo miami bass e o funk melody, mas é 100% brasileiro. Embora ele esteja ainda enga tinhando, acredito que ele vá ficar mais ‘mainstream’. Recentemente, a Cardi B fez uma live no Instagram falando que não escuta mais hip-hop, que só tem escu- tado funk brasileiro”, conta Kiko Latino.
ESTILOS UNIDOS
No Brasil, de um tempo para cá, ar- tistas do funk e do rap têm gravado juntos, caso de Djonga, Delano e MC Hariel (“Deus É Família”), além de Mano Brown e Naldo Benny (“Benny & Brown”). Fato é que, aos poucos, os dois estilos estão se unindo.
Além de serem periféricos e oriundos do hip-hop, o funk e o rap são movimentos culturais e políticos de massa e agentes transformadores na vida de milhões de jovens. Queira ou não, são filhos do mesmo pai. Ainda que muitas pessoas considerem o funk como uma música alienada e obscena, o gênero não passa de um retrato da vida de uma parcela da população excluída da sociedade, que manifesta nas letras relatos da vida real desse contingente.
Para quem ainda tem dúvida se o funk brasileiro faz ou não parte do hip-hop, o DJ Marlboro relembra uma história com o Afrika Bambaataa. “Ele foi fazer um show em São Paulo, e o pessoal todo do rap foi lá para ver o cara que fundou a Zulu Nation, fundamental para o hip-hop. Ele começou a tocar funk carioca e ficou todo o mundo sem entender o que estava acontecendo. Foram reclamar, e ele disse: ‘Porra, cara, vocês perderam a noção do que é hip-hop! O funk carioca é um dos melhores representantes do hip-hop no mundo’. A proposta do hip-hop é ser a música do cotidiano, dos excluídos, uma expressão daqueles que não têm voz. O que o funk carioca faz? Exatamente o mesmo! Não importa a sonoridade, não importa qual o caminho que eles acharam para fazer isso, o que importa é que eles acharam.”
(a edição 120 da Ocas” ainda traz mais depoimentos dos artistas Thaíde, DJ Marlboro e DJ Hum e uma linha do tempo sobre o hip-hop, o funk e o rap)
